quinta-feira, 23 de julho de 2009

Débito por favor - Bruno Rodrigo



Jamais poderá esquecer-se daquele natal. Não pelas festas, até porque nunca festejou uma. O seu programa natalino era assistir o especial da Xuxa ou do Rei Roberto Carlos, ou seja, a sua noite de natal dependia dos produtores de uma emissora de televisão, que aliás, não parava de repetir aquela mesma música, quemais de 40 anos, é tocada sempre nos meses de dezembro. Também, não ganhou nenhum presente especial, se quer ganhou algum. Embora não fora marcado por lembranças fantásticas, fora traumatizado por quem tinha condições de cear uma farta mesa de natal como manda a tradição.

Acontece que ele trabalhava em um supermercado, o maior e bem enfeitado supermercado da região. Naquele supermercado também havia as maiores variedades de produtos para compor uma bela ceia. A maioria deles, ele nem conhecia, nunca havia provado e provavelmente, nunca provará, pois o seu salário não lhe permitiria tais experiências. O maior supermercado da região tinha o pior salário também.

Enquanto embalava as compras, observava a vida das pessoas. Desenvolveu o dom de analisar intimamente cada um pelo o que comprava. Conseguia perceber que algumas senhoras compravam os melhores cremes e sabonetes, mas escolhiam as marcas mais baratas de arroz, feijão, macarrão e óleo, talvez porque fosse preciso economizar em algum lugar para se gastar em outro. Os rapazes mais descolados sempre passavam pelo caixa acompanhados de belas moças, que compravam coisas de utilidades femininas, que eram pagas pelos tais rapazes descolados, e que a propósito, nunca compravam nada para si. Analisou que geralmente, as mulheres escolhem tudo, perguntam sobre os produtos, ordenam como querem que suas compras sejam embaladas, e na hora de pagar a conta, o marido aparece com um ar de superioridade, como se mandasse em alguma coisa. Porém, o mais comum de se ver nas compras executadas por casais, era que quase sempre os homens compravam revistas de pesca ou futebol quando percebiam que suas mulheres estavam comprando absorventes íntimos. Até porque, se o homem haveria de perder a sua semana, pelo menos faria uma boa leitura.

Ficara fascinado ao embalar a compra de uma “snobíssima” senhora. Nada de arroz, feijão, açúcar ou coisas básicas. Na compra da senhora, apenas o que chamaríamos de supérfluos. Chocolates, nozes, carnes finas, queijos, vinhos, castanhas, enlatados, peixes, aves, roscas, massas, doces, presentes... Ah! Como aquelas coisas supérfluas eram essenciais para um natal de verdade. Ele desejou cada produto que embalou, olhou para a tela do computador do caixa, e viu o valor da compra: R$ 2.132,56. Impressionou-se. Era mais do que cinco vezes o seu soldo, e para completar, ela apenas tirou o seu cartão da bolsa e disse: “ - Débito por favor”.

Após efetuar o pagamento, a senhora o olhou, e como quem ordena a um cachorro, o ordenou que levasse suas compras até o seu carro, e que fizesse com cuidado. Não poderia quebrar nenhum dos ovos especiais e nenhuma das garrafas de vinhos importados, afinal, aquele compra valia mais do que ele próprio.

Isso o ofendera profundamente. Sempre pensou que valesse alguma coisa por ser trabalhador e honesto. Pensava que a dignidade, que conquistava dia após dia através do labor, não pudesse ter valor por ser algo incalculável. Engano. Tinha valor sim e valia menos que uma compra de natal.
Após terminar de colocar as compras no porta-malas do automóvel daquela mulher, cometeu o vacilo de ficar parado admirando aquele belo carro. A mulher, que em curtíssimo espaço de tempo, tinha reclamado do tempo, do sol, do embalador, da operadora de caixa, do supermercado, do marido que tinha ficado em casa e das visitas, deu uma sem avisar, passando por cima do esquerdo do pobre embalador.

Pois bem, agora ele sabia que os belos carros também são bem pesados, e mais do que a dor física, doía-lhe o desprezo. Aquela rica mulher tinha dinheiro, carro e uma bela compra, então, por que será que ofendia a todos que, de uma certa forma, trabalhavam para que ela pudesse ter um natal com tudo que seu dinheiro pudesse pagar? Se tinha tanta coisa, por que roubar a felicidade e a graça do dia de uma pessoa tão simples?


Refletiu. Descobriu uma pobreza naquela rica mulher. Para se manter no patamar ilusório que ela mesma criou, ela precisou roubar a única coisa que o pobre embalador tinha naquele natal: a sua noção de que tinha algum valor por estar trabalhando honestamente em uma véspera natalina. Não chegou à nevar, mas fez muito frio naquela noite.

2 comentários:

Obrigado pela visita - Bruno Rodrigo