domingo, 5 de julho de 2009

À margem - Bruno Rodrigo

Sorrateiramente, ele apanhou um saco de batatas fritas e saiu correndo. Saiu trombando nas pessoas que estavam à sua frente, derrubando sobre a banca de laranjas, uma "snob" senhora que ali fazia as suas compras: - Marginal, filho do diabo, satanás... peguem-no, ele está roubando!
O Dono do pequeno mercado, que há tempos enfretava problemas com furtos, perseguiu o garoto até a porta da rua. Em vão! O garoto virara a esquina mais depressa que um raio, restando ao comerciante apenas gritar em altíssimo e irado tom tais impropérios: - Marginal! Volte aqui mais uma vez que eu arranco-lhe as mãos, Marginalzinho! Ladrão! Marginal! Marginal!
O garoto pouco se ofendera, até porque, não fazia parte das suas abilidades refletir sobre o que as pessoas diziam ao seu respeito. Ele tinha como família, apenas outros meninos, que abandonados pelo destino, pelo amor e pela vida, dormiam nos alpendres das praças e faziam da arte do furto uma profissão. Fora com eles que aprendera a ser cuidadoso, ligeiro, e principalmente solidário. Tudo que roubavam dividiam entre si. Os marginais da praça do Coqueiro, como eram chamados pela sociedade que os marginalizavam, só tinham a si mesmos. Por isso se cuidavam e se vigiavam, ainda que de maneira inconsciente. O menino percebeu que já tinha afstado-se suficientemente do mercado que acabara de roubar, quando de repente, viu um joão-de-barro que construía o seu ninho em uma enorme mangueira que encontrava-se no jardim de uma belíssima mansão. Do lado de fora dos muros, ele contemplou aquele pássaro e a sua imensa habilidade. Notou que o ninho daquela ave era o mais bem elaborado e estético que já vira, embora não fizessem parte do seu vocabulário as palavras "elaborado" e "estético", por isso exclamou apenas um sonoro: - Que doido! "Mó" massa! Sentiu-se convidado, por isso, escalou o muro e subiu na mangueira. O passarinho assustou-se e saiu voando. Ele continuou à observar, agora de mais perto. Espantou-se quando olhou dentro do ninho e viu três ovinhos pequenos e delicados. Já estava com a mão dentro do ninho, pronto para pegar os ovinhos, quando a voz de uma simpática velhinha lhe reprendera:
- Não toque nos ovinhos meu filho! São frágeis e podem quebrar.
- O que há dentro deles? - Perguntou o garotinho.
- Ora! Há filhotes de joão-de-barro.
- Mesmo! Então quero ver!
- Não. Ainda não é hora. Desça aqui para que eu te explique.
O garoto desceu, a velhinha sentou-se em um banco próximo a mangueira e discursou:
- Tudo na vida precisa de um momento para acontecer, tudo tem o seu tempo. Os filhotinhos que estão dentro daqueles ovinhos ainda não estão prontos para nascerem. Precisam esperar mais um pouquinho para quebrarem as cascas dos ovos, e então, poderão cantar, voar, e construir belíssimos ninhos. E você precisa aprender a esperar o tempo certo.
- E quando será o tempo certo?
- Eu não sei. Mas, você pode vir aqui todos os dias se quiser. Assim, quando o dia certo chegar, você estará aqui.
- Legal! Virei todos os dias!
De fato, o garoto passou a frequentar a residência daquela senhora. A velhinha motivada com a companhia daquele menino, que para ela era agradabilíssima, começou a ensiná-lo a cuidar das flores, dos canteiros, a regar as plantas, e o que mais agradava o jovenzinho, ela sempre fazia deliciosos bolinhos de chuva. Um dia o rapazinho a perguntou:
- A senhora sabe o que é marginal? Todos na rua me chamam assim, mas eu não sei o que é.
A velhinha levou o garotinho para dentro da sua casa e mostrou-lhe belíssimos quadros. Haviam várias réplicas. Tudo do melhor bom gosto artístico: Da vinci, Michelangelo, Frida, Portinari, Dalí entre outros:
- O que você acha dos quadros, meu bom menino?
- Alguns eu não entendo, mas são maravilhosos!
-Você está vendo as linhas que limitam as pinturas? São as margens.
- Margens?
- Sim. Marginal é aquele que está à margem, no limite. Ele faz parte da pintura, porém, está quase que fora dela. Embora mesmo assim, tenha uma importância, afinal, a margem denomina até onde a pintura pode chegar. Em você meu pequeno, vejo até onde a civilização, a sociedade pode chegar. Você representa um limite que as pessoas não conseguem atravessar, você é uma linha entre o caso e descaso, a pena e a compaixão.
- Quer dizer que eu não faço parte da pessoas?
- As pessoas não te querem como parte delas, só que isso um é defeito dos que marginalizam, não dos marginalizados como você e como eu.
- A senhora? Com esse "casão"? Sempre trazendo um monte de coisa do mercado sem ter ninguém te perseguindo? A senhora não é marginal não.
- Ah doce criança! Sou a pior das marginalizadas. Meus filhos após crescerem e estudarem se casaram e construíram suas famílias. Quando perceberam que eu estava caquética e doente, compraram-me esta casa e me mandaram para cá. Deram-me uma linda casa. Mandam mensalmente para mim uma boa quantidade em dinheiro, presentes e contratam os melhores médicos para cuidarem da minha saúde. Já quiseram até mesmo, contratar alguém para morar comigo, mas eu não quis. No entanto, a presença deles, há tempos que eu não tenho. Não conheço meus netinhos pessoalmente, apenas por fotos. Se possível, eles pagariam outras pessoas para se passarem por meus filhos. Isto meu garoto, também é marginalização. Não se marginaliza só com a pobreza, mas também, com a falta de afeto, de gratidão, de cuidado.
- Ora! Lá na praça, agente sempre cuida um do outro. Os meninos mais velhos, não deixam que os outros garotos, de outras turmas, batam nos menores.
- Pois bem! Vocês socializam-se mais do que a própria sociedade que os condena.
Passadas algumas semanas os filhotes de joão-de-barro nasceram, e o garoto aprendeu com isto a virtude da espera. Mais algumas semanas e aquela velhinha morrera sozinha em seu quarto. Com isso, o garoto percebera que quando a senhora lhe dissera que tudo tem seu tempo, ela quis dizer que esse tempo também se esgota. Não mais voltou àquela casa. Tal lugar dava-lhe uma coisa estranha no peito que ele não gostava de sentir. Continuou a viver no seu submundo, sendo uma margem que limitava a bondade, uma linha que denunciava até onde se pode amar. Ele e seus amigos estavam por detrás dessa linha, e quando os comerciantes lhe chamava de marginal, agora sim, ele sentia-se ofendido. E por toda a sua vida, essa sempre foi a ofensa que mais lhe doía na alma.

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